O comunismo é a ideia da
emancipação de toda humanidade
07/02/2012
Período intervalo: sabemos que as velhas escolhas
estão acabadas, mas
não sabemos ainda muito bem
quais são as novas escolhas.
"O comunismo é a ideia da
emancipação de toda humanidade"
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Alain Badiou |
O filósofo francês Alain Badiou
é um homem que não teme riscos: nunca renunciou a defender um conceito que
muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em entrevista à
Carta Maior, Badiou fala da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista”.
Segundo ele, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser
humano e da sociedade, merece ser resgatado em um mundo onde tudo passou a ter
um valor mercantil. Pensador crítico da modernidade, Badiou define o processo
político atual como uma “guerra das democracias contra os pobres”.
Eduardo Febbro - Direto de Paris / Data:
05/02/2012
Paris
- Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador francês
mais conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e sem concessões.
Filosofia, matemática, política, literatura e até o amor circulam em seu
catálogo de produções e reflexões. Sua obra, de caráter multidisciplinar, traz
uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama de “materialismo democrático”, ou
seja, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil.
Este filósofo insubmisso é também um homem de riscos: nunca renunciou a
defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o
comunismo. Em sua pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou da “hipótese
comunista” do que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo
o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da
sociedade, merece ser resgatado.
Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva
da revolta, o horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componente não são
a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que
inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da
existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da
modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma
“guerra das democracias contra os pobres”.
O filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero
panfletário. Ele convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do
Estado, traça os limites da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia de
República, reatualiza as formas possíveis e não aceitas de oposição e coloca no
centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais.
Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem
sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos, Badiou
introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovedor, no
qual o autor de “O ser e o acontecimento” define o amor como uma categoria da
verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivíduos
podem firmar para viver. Sua lucidez analítica o conduz inclusive a dizer que o
amor, porque grátis e total, está ameaçado pelo mundo contemporâneo.
Revoluções
árabes, movimento dos indignados, mobilização crescente dos grupos que estão
contra a globalização, a luta ou a oposição contra as modalidades do sistema
atual se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que ocorreu, o que você
diria hoje a todos esses rebeldes do mundo para que sua ação conduza a uma
autêntica construção?
Eu diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da
anti-globalização, a qual parece sugerir que, por meio de várias medidas,
pode-se re-humanizar a situação, incluindo a re-humanização do capitalismo, é a
globalização da vontade popular. Globalização quer dizer vigor internacional.
Mas essa globalização internacional necessita de uma ideia positiva para uni-la
e não só a ideia crítica ou a combinação de desacordos e protestos. Trata-se de
um ponto muito importante. Passar da revolta à ideia é passar da negação á
afirmação. Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.
Um
dos princípios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que não está
regida pelo signo da ideia não é uma vida verdadeira. Agora, como defender hoje
essa ideia sob a ameaça do hiper-consumo, das falsidades e injustiças da
democracia parlamentar e em um mundo onde nossa relação com o outro passa pela
relação com o objeto e não com as ideias ou com os indivíduos? No mundo
contemporâneo, a ideia é o produto e não a relação humana.
A verdadeira vida é uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de
outro modo, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns
dirão que há valores transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o
animal; outros dirão, ao contrário, que devemos nos libertar desses valores
transcendentes, que Deus está morto, que viva os apetites selvagens. Mas, entre
ambas, há uma solução intermediária, dialética, que consiste em dizer que, na
vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver um trajeto que nos liga à
universalidade. Isso é o que eu chamo “uma vida verdadeira”, ou seja, uma vida
que encontrou ao menos algumas verdades.
Chamo "ideia" esse intermediário entre as verdades universais,
digamos eternas para provocar um pouco os contemporâneos, e o indivíduo. Que é
então uma vida sob o signo da ideia em um mundo como este? Faz falta uma
distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada só com
a vontade, faz falta algo que nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar
posição frente ao que se passou. Pode ser um amor, um levante político, uma
decepção, enfim, muitas coisas. Aí se põe em jogo a vontade para criar um mundo
novo que não estará baseado na ordem do mundo tal como é, com sua lei de
circulação mercantil, mas sim em um elemento novo de minha experiência.
O mundo moderno se caracteriza pela soberania das opiniões. E a opinião é algo
contrário à ideia. A opinião não pretende ser universal, é minha opinião e vale
tanto quanto a opinião de qualquer outra pessoa. A opinião se relaciona com a
distribuição de objetos e a satisfação pessoal. Há um mercado das opiniões
assim como há um mercado das ações financeiras. Há momentos em que uma opinião
vale mais do que outra; mais tarde essa opinião quebra como um país. Estamos no
regime geral do comércio da comunicação no qual a ideia não existe. Inclusive
se suspeita da ideia e se dirá que ela é opressiva, totalitária, que se trata
de uma alienação. E por que isso ocorre? Simplesmente porque a ideia é grátis.
Ao contrário da opinião, a ideia não entra em nenhum mercado. Se defendemos
nossa convicção, o fazemos com a ideia de que é universal. Essa ideia é, então,
uma proposta compartilhada, não se pode colocá-la à venda no mercado. Mas como
tudo o que é grátis, a ideia está sob suspeita.
Pergunta-se: qual é o valor do que é grátis? Justamente, o valor do grátis é
que não tem valor no sentido das trocas. Seu valor é intrínseco. E como não se
pode distinguir a ideia do preço do objeto a única existência da ideia está em
um tipo de fidelidade existencial e vital para a ideia. A melhor metáfora para
isso é encontrada no amor. Se queremos profundamente a alguém, esse amor não
tem preço. É preciso aceitar os sofrimentos, as dificuldades, o fato de que
sempre há uma tensão entre o que desejamos imediatamente e a resposta do outro.
É preciso atravessar tudo isso.
Quando estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso é o que garante a
continuidade desse amor. Para se opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na
política, mas estar cativado completamente por uma obra de arte ou estar
profundamente enamorado é como uma rebelião secreta e pessoal contra o mundo
contemporâneo. Esse é o principal problema da vida contemporânea.
Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado em
produto, em mercadoria, inclusive os textos, as ideias, os pensamentos. Marx
havia antecipado isso muito bem: tudo pode ser medido segundo seu valor
monetário.
Você
é um dos poucos filósofos que defende o que você mesmo chama “a ideia
comunista”. Como é possível defender a ideia comunista quando seu conteúdo
histórico foi desastroso.
Penso que o conteúdo histórico das ideias sempre pode ser declarado desastroso.
Os democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de perto a história das
democracias, ela está cheia de desastres. Para tomar o exemplo mais elementar,
se tomamos a Primeira Guerra Mundial, ela foi lançada por democratas,
democratas alemães, ingleses e franceses. Foi um massacre inimaginável, o qual
já se demonstrou esteve ligado a apetites financeiros nas colônias africanas,
apetites que não diziam respeito aqueles que seriam massacrados mais tarde.
Houve milhões de mortos e de sacrificados em condições espantosas e, aceite-se
ou não, isso é parte da história das democracias. Se interrogamos o conjunto
das experiências históricas veremos que todo o mundo tem sangue até as orelhas.
No que se refere à palavra “comunista” em si, da mesma maneira que ocorre com a
palavra “democracia”, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue até as
orelhas. Mas, por acaso, é preciso sempre inventar outra palavra? Tomemos, por
exemplo, o cristianismo. O cristianismo é São Francisco de Assis, a santidade
verdadeira, o advento da ideia de uma verdadeira generosidade para com os
pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do outro lado, também é a inquisição, o
terror, a tortura e o suplício. Por acaso vamos dizer que é um crime alguém se
chamar de cristão? Ninguém diz isso. Eu defendo uma espécie de absolvição dos
vocábulos. Eles têm o sentido dado pela sequência histórica da qual falamos.
De fato, o comunismo conheceu duas sequências histórias. A sequência histórica
do século XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para designar uma
esperança histórica humana fundamental, a esperança da igualdade, da
emancipação das classes oprimidas, de uma organização social igualitária e
coletiva. Depois há outra sequência muito diferente onde se experimentou o
comunismo, ou seja, se construiu uma forma de poder particular que buscou
coletivizar a indústria e essas coisas, mas que, no final, se tornou uma forma
de Estado despótico.
Eu proponho que não se sacrifique a palavra “comunismo” por causa desta segunda
sequência, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira sequência,
possibilitando assim a abertura de uma terceira sequência.
Nesta terceira sequência, a palavra “comunismo” significaria o que sempre
significou: a ideia de uma organização social totalmente distinta da que
conhecemos e que já sabemos que está dominada por uma oligarquia financeira e
econômica absolutamente feroz e indiferente aos interesses gerais da
humanidade. Eu proponho então voltar ao comunismo sob a forma da ideia
comunista: a ideia comunista é a ideia da emancipação de toda a humanidade, é a
ideia do internacionalismo, de uma organização econômica mobilizando diretamente
os produtores e não as potências exteriores; é a ideia da igualdade entre os
distintos componentes da humanidade, do fim do racismo e da segregação e também
é a ideia do fim das fronteiras.
Não esqueçamos que as fronteiras são uma grande característica do mundo
contemporâneo. O comunismo é tudo isso. Se alguém inventar uma palavra
formidável para designar tudo isso, que não seja a palavra comunismo, eu
aceito. Mas a história da política não é a história das palavras, mas sim a
história dos novos significados que podem ter as palavras. Em geral se opõe a
palavra “democracia” à palavra “comunismo”. Eu digo que uma palavra não é mais
inocente do que a outra. Não lutemos pela inocência das palavras. Discutamos
sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.
Agora
chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o Marx de
antes do marxismo. Qual dos dois você reivindica?
Marx e marxismo têm significados muito distintos. Marx pode significar a
tentativa de uma análise científica da história humana com base nos conceitos
fundamentais de classe e de luta de classe, e também a ideia de que a base das
diferentes formas que a organização da humanidade adquiriu no curso da história
é a organização da economia. Nesta parte da obra de Marx há coisas muito
interessantes como, por exemplo, a crítica da economia política. Mas também há
outro Marx que é um Marx filósofo, que vem depois de Engels e que tenta mostrar
que a lei das coisas deve ser buscada nas contradições principais que podem ser
percebidas dentro das coisas. É o pensamento dialético, o materialismo
dialético. No concreto, há uma base material de todo pensamento e este se
desenvolve através de sistemas de contradição, de negação. Este é o segundo
Marx. Mas também há um terceiro Marx que é o militante político. É um Marx que,
em nome da ideia comunista, indica o que fazer: é o Marx fundador da Primeira
Internacional, é o Marx que escreve textos admiráveis sobre a Comuna de Paris
ou sobre a luta de classes na França.
Há pelo menos três Marx e o que mais me interessa, reconhecendo o mérito imenso
de todos eles, é o Marx que tenta ligar a ideia comunista em sua pureza
ideológica e filosófica às circunstâncias concretas. É o Marx que se pergunta
pelo caminho para organizar as pessoas politicamente na direção da ideia
comunista. Há ideias fundamentais que foram experimentadas e que ainda
permanecem e, em cujo centro, encontramos a convicção segundo a qual nada
ocorrerá enquanto uma fração significativa dos intelectuais não aceite estar organicamente
ligada às grandes massas populares. Esse ponto está totalmente ausente hoje em
várias regiões do mundo. Em maio de 68 e nos anos 70, este ponto foi
abandonado. Hoje pagamos o preço desse abandono que significou a vitória
completa e provisória do capitalismo mais brutal.
A vida concreta de Marx e Engels consistiu em participar nas manifestações na
Alemanha e em tentar criar uma Internacional. E o que era a Internacional? A
aliança dos intelectuais com os operários. É sempre por aí que se começa. Eu
chamo então a que comecemos de novo: por um lado com a ideia comunista e, por
outro, com um processo de organização sob esta ideia que, evidentemente, levará
em conta o conjunto do balanço histórico, mas que, em certo sentido, terá que
começar de novo.
Caído,
derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliação, em que fase se
encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou somente vivendo
um recesso devido a suas enormes contradições internas?
O capitalismo é um sistema de roubo planetário exacerbado. Pode-se dizer que o
capitalismo é uma ordem democrática e pacífica, mas é um regime de
depredadores, é um regime de banditismo universal. E digo banditismo de maneira
objetiva: chamo bandido a qualquer um que considere que a única lei de sua
atividade é seu próprio proveito. Mas um sistema como este que, por um lado,
tem a capacidade de se estender e, por outro, de deslocar seu centro de
gravidade é um sistema que está longe de estar moribundo.
Não é o caso de acreditar que, pelo fato de estarmos em uma crise sistêmica,
nos encontramos à beira do colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso
seria ver as coisas através da pequena janela da Europa. Creio que há dois
fenômenos que estão entrelaçados. O primeiro é a derrocada da segunda etapa da
experiência comunista, a falência dos Estados socialistas. Essa falência abriu
uma enorme brecha para o outro termo da contradição planetária que é o
capitalismo mundializado. Mas também abriu novos espaços de tensões materiais.
O desenvolvimento capitalista de países do porte da China e da Índia, assim
como a recapitalização da ex-União Soviética tem o mesmo papel que o
colonialismo no século XIX. Abriu espaços gigantes de manobra, de clientela de
novos mercados.
Estamos vivendo agora esse fenômeno: a mundialização do capitalismo que se fez
potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversário histórico do
período precedente. Esse fenômeno faz com que, pela primeira vez na história da
humanidade, se possa falar realmente de um mercado mundial. Esse é um primeiro
fenômeno. O segundo é o deslocamento do centro de gravidade. Estou convencido
de que as antigas figuras imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar
de sua arrogância tem uma quantidade considerável de crimes que ainda aguardam
perdão, e os Estados Unidos, apesar do fato de ainda ocupar um lugar muito
importante, são na verdade entidades capitalistas progressivamente decadentes e
até um pouco crepusculares. Na Ásia, na América Latina, com a dinâmica brasileira,
e inclusive em algumas regiões do Oriente Médio, vemos aparecer novas
potências. O sistema da expansão capitalista chegou a uma escala mundial, mas o
sistema das contradições internas do capitalismo modifica sua geopolítica. As
crises sistêmicas do capitalismo – hoje estamos em uma grave crise sistêmica –
não têm o mesmo impacto segundo a região. Temos assim um sistema expansivo com
dificuldades internas.
Mas esses novos polos se desenvolvem segundo o mesmo modelo.
Sim, e não creio que esses novos polos introduzam uma diferenciação
qualitativa. É um deslocamento interno ao sistema que dá a ele margem de
manobra.
Há
duas versões de um de seus livros mais importantes: trata-se do Manifesto para
a Filosofia. O primeiro Manifesto foi publicado há vinte anos, o segundo há
dois. Se levamos em conta as revoluções árabes e as crises do sistema
financeiro internacional, o que mudou fundamentalmente no mundo e no ser humano
entre os dois manifestos?
O que mudou mais profundamente é a divisão subjetiva. As escolhas fundamentais
às quais estiveram confrontados os indivíduos durante o primeiro período
estavam ainda dominadas pela ideia da alternativa entre orientação
revolucionária e democracia e economia de mercado. Dito de outro modo,
estávamos na constituição do debate entre totalitarismo e democracia. Isso
exige dizer que todo o mundo estava sob o influxo do balanço da experiência
histórica do século XX. O primeiro Manifesto foi publicado em 1989, quase ao
final do século XX. Em escala mundial, esta discussão, que adquiriu formas
distintas segundo os lugares, se focalizou em qual poderia ser o balanço deste
século XX. Por acaso, temos que condenar definitivamente as experiências
revolucionárias? É preciso abandoná-las porque foram despóticas, violentas?
Neste sentido, a pergunta era: devemos ou não nos unir à corrente democrática e
entrar na aceitação do capitalismo como um mal menor?
A eficácia do sistema não consistiu em dizer que o capitalismo era magnífico,
mas sim que era o mal menor. Na verdade, tirando um punhado de pessoas ninguém
pensa que o capitalismo é magnífico. Mas o que se disse nesse período foi que a
alternativa era desastrosa. Há 20 anos estávamos neste contexto, ou seja, a
reativação da filosofia inspirada pela moral de Kant. Ou seja, não é o caso de
ter grandes ideias de transformação política voluntaristas porque isso conduz
ao terror e ao crime, mas sim velar por uma democracia pacificada dentro da
qual os direitos humanos estarão protegidos. Hoje esta discussão está terminada
e está terminada porque todo mundo vê que o preço pago por essa democracia
pacificada é muito elevado. Todo mundo toma consciência que se trata de um
mundo violento, com outras violências, que a guerra segue rondando todo o
tempo, que as catástrofes ecológicas e econômicas estão na ordem do dia e que,
além disso, ninguém sabe para onde vamos.
Podemos imaginar que esta ferocidade da concorrência e esta constante submissão
à economia de mercado durem ainda vários séculos? Todo mundo sente que não, que
se trata de um sistema patológico. Foi revelado que este sistema, que nos foi
apresentado como um sistema moderado, sem dúvida em nada formidável, mas melhor
que todos os demais, é um sistema patológico e extremamente perigoso. Essa é a
novidade. Não podemos mais ter confiança no futuro desta visão das coisas.
Estamos em uma fase de transição e incerteza. Introduziu-se a hipótese de uma
espécie de humanismo renovado que poderíamos chamar de humanismo de mercado, o
mercado, mas humano. Creio que essa figura, que segue vigente graças aos
políticos e aos meios de comunicação, está morta. É como a União Soviética:
estava morta antes de morrer. Creio que, em condições diferentes e em um
universo de guerra, de catástrofes, de competição e de crise, esta ideia do
capitalismo com rosto humano e da democracia moderada está morta. Agora será
preciso não mais escolher entre duas visões constituídas, mas sim inventar uma.
Dessa
ambivalência provém talvez a sensação de que as jovens gerações estão perdidas,
sem confiança em nada?
Isso é o que sinto na juventude de hoje. Sinto que a juventude está
completamente imersa no mundo tal como é, não tem ideia de outra alternativa,
mas, ao mesmo tempo, está perdendo confiança neste mundo, está vendo que, na
verdade, este mundo não tem futuro, carece de toda significação para o futuro.
Creio que estamos em um período onde as propostas de ideias novas estão na
ordem do dia, mesmo que uma boa parte da opinião não saiba disso. E não sabe
porque ainda não chegamos ao final deste esgotamento interno da promessa
democrática. É o que eu chamo de período intervalo: sabemos que as velhas
escolhas estão acabadas, mas não sabemos ainda muito bem quais são as novas
escolhas.
Vários
filósofos apontam o fato de que os valores capitalistas destruíram a dimensão
humana. Você acredita, ao contrário, que ainda persiste uma potência altruísta
no ser humano.
Devemos olhar o que ocorreu nas manifestações dos países árabes. Nunca
acreditei que essas manifestações iam inventar um novo mundo de um dia para o
outro, nem pensei que essas revoltas apresentavam soluções novas para os
problemas planetários. Mas o que me assombrou foi a reaparição da generosidade
do movimento de passa, quer dizer, a possibilidade de agir, de sair, de
protestar, de pronunciar-se independentemente do limite dos interesses
imediatos e fazê-lo junto a pessoas que, sabemos, não compartilham nossos
interesses. Aí encontramos a generosidade da ação, a generosidade do movimento
de massa, temos a prova de que esse movimento ainda é capaz de reaparecer e
reconstituir-se. Com todos os seus limites, também temos um exemplo semelhante
com o movimento dos indignados.
O que fica evidente em tudo isso é que estão aí em nome de uma série de
princípios, de ideias, de representações. Esse processo, obviamente, será
longo. O movimento da primavera árabe me parece mais interessante que o dos
indignados porque tem objetivos precisos, ou seja, a desaparição de um regime
autocrático e o tema fundamental que é o horror diante da corrupção. A luta
contra a corrupção é um problema capital do mundo contemporâneo. Nos indignados
vimos a nostalgia do velho Estado providência. Mas volto a reiterar que o
interessante em tudo isso é a capacidade de fazer algo em nome de uma ideia,
mesmo que essa ideia tenha acentos nostálgicos. O que me interessa saber é se
ainda temos a capacidade histórica de agir no regime da ideia e não
simplesmente segundo o regime da concorrência ou da conservação. Isso para mim
é fundamental. A reaparição de uma subjetividade dissidente, seja quais forem
suas formas e suas referências, isso me parece muito importante.
Você
publicou um livro sobre o amor, que é de uma sabedoria comovedora. Para um
filósofo comprometido com a ação política e cujo pensamento integra as
matemáticas, a aparição do tema do amor é pouco comum.
O amor é um tema essencial, uma experiência total. O amor está ameaçado pela
sociedade contemporânea. O amor é um gesto muito forte porque significa que é
preciso aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa
preocupação. No amor, o fundamental está em que nos aproximamos do outro com a
condição de aceita-lo em minha existência de forma completa, inteira. Isso é o
que diferencia o amor do interesse sexual. Este se fixa sobre o que os
psicanalistas chamaram de “objetos parciais”, ou seja, eu extraio do outro
alguns emblemas fetiches que me interessam e que suscitam minha excitação
desejante. Não nego a sexualidade, pelo contrário. Ela é um componente do amor.
Mas o amor não é isso. O amor é quando estou em estado de amar, de estar satisfeito
e de sofrer e de esperar tudo o que vem do outro: a maneira como viaja, sua
ausência, sua chegada, sua presença, o calor de seu corpo, minhas conversas com
ele, os gostos compartilhados. Pouco a pouco, a totalidade do que o outro é
torna-se um componente de minha própria existência. Isso é muito mais radical
que a vaga ideia de preocupar-me com o outro. É o outro com a totalidade
infinita que representa e com o qual me relaciono em um movimento subjetivo
extraordinariamente profundo.
Em
que sentido o amor está ameaçado pelos valores contemporâneos?
Está ameaçado porque o amor é gratuito e, desde o ponto de vista do
materialismo democrático, injustificado. Por que deveria me expor ao sofrimento
da aceitação da totalidade do outro? O melhor seria extrair dele o que melhor
corresponde aos meus interesses imediatos e aos meus gostos e descartar o
resto. O amor está ameaçado hoje porque é distribuído em fatias. Observemos
como se organizam as relações nestes portais de internet onde as pessoas entram
em contato: o outro já vem fatiado em fatias, um pouco como a vaca nos
açougues. Seus gostos, seus interesses, a cor dos olhos, o corte dos cabelos,
se é grande ou pequeno, loiro ou moreno. Vamos ter uns 40 critérios e, ao
final, vamos nos dizer: vou comprar este. É exatamente o contrário do amor. O
amor é justamente quando, em certo sentido, não tenho a menor ideia do que
estou comprando.
E
frente a essa modalidade competitiva das relações, você proclama que o amor
deve ser reinventado para nos defendermos, que o amor deve reafirmar seu valor
de ruptura e de loucura.
O amor deve reafirmar o fato de que está em ruptura com o conjunto das leis
ordinárias do mundo contemporâneo. O amor deve ser reinventado como valor
universal, como relação em direção da alteridade, daquilo que não sou eu e onde
a generosidade é obrigatória. Se não aceito a generosidade, tampouco aceito o
amor. Há uma generosidade amorosa que é inevitável. Sou obrigado a ir na
direção do outro para que a aceitação do outro em sua totalidade possa funcionar.
Essa é uma excelente escola para romper com o mundo tal como é. Minha ideia
sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere
a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à selvageria;
uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige uma espécie de
confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que este outro esteja
totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de
maneira interna a esse outro, pois bem, já que tudo descrito acima é possível
isso prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a
rivalidade e a separação sejam a lei do mundo.
A
política não está muito afastada de tudo isso. Para você, há uma dimensão do
amor na ação política?
Sim, inclusive pode resultar perigoso. Se buscamos uma analogia política do
amor eu diria que, assim como no amor onde a relação com uma pessoa tem que
constituir sua totalidade existencial como um componente de minha própria
existência, na política autêntica é preciso que haja uma representação inteira
da humanidade. Na política verdadeira, que também é um componente da vida
verdadeira, há necessariamente essa preocupação, essa convicção segundo a qual
estou ali enquanto representante e agente de toda a humanidade. Do mesmo modo
que ocorre no amor, onde minha preocupação, minha proposta e minha atividade
estão ligadas à existência do outro em sua totalidade.
O
que pode fazer um casal jovem e enamorado neste mundo violento, competitivo,
onde o projeto do casal já está ameaçado pela própria dinâmica do consumo e da
competição?
Creio que o projeto de um casal pode ser uma rama se não se dissolve, se não se
metamorfoseia em um projeto que acabe se transformando, no fundo, na acumulação
de interesses particulares. Na situação de crise e de desorientação atual o
mais importante é segurar as mãos no timão da experiência pela qual estamos
passando, seja no amor, na arte, na organização coletiva, no combate político.
Hoje, o mais importante é a fidelidade: em um ponto, ainda que seja em apenas
um, é preciso não ceder. E para não ceder devemos ser fieis ao que ocorreu, ao
acontecimento. No amor, é preciso ser fiel ao encontro com o outro porque vamos
criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o mundo exerce uma pressão
contrária e nos diz: “cuidado, defenda-se, não deixe que o outro abuse de ti”.
Com isso está dizendo: “voltem ao comércio ordinário”.
Então, como essa pressão é muito forte, o fato de manter o timão no rumo certo,
de manter vivo um elemento de exceção, já é extraordinário. É preciso lutar
para conservar o excepcional que ocorre em nossas vidas. Depois veremos. Dessa
forma salvaremos a ideia e saberemos o que é exatamente a felicidade. Não sou
um asceta, não sou a favor do sacrifício. Estou convencido de que se
conseguimos organizar uma reunião com trabalhadores e colocamos em marcha uma
dinâmica, se conseguimos superar uma dificuldade no amor e nos reencontramos
com a pessoa que amamos, se fazemos uma descoberta científica, então começamos
a compreender o que é a felicidade. A felicidade é uma ideia fundamental. A
construção amorosa é a aceitação conjunta de um sistema de riscos e de
invenções.
Você
também introduz uma ideia peculiar e maravilhosa: devemos fazer tudo para
preservar o que nos ocorre de excepcional.
Aí está o sentido completo da vida verdadeira. Uma vida verdadeira se configura
quando aceitamos os presentes perigosos que a vida nos oferece. A existência
nos traz riscos, mas, na maioria das vezes, estamos mais espantados que felizes
por esses presentes. Creio que aceitar isso que nos ocorre e que parece raro,
estranho, imprevisível, excepcional, que seja o encontro com uma mulher ou o
maio de 1968, aceitar isso e suas consequências, isso é a vida, a verdadeira
vida.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer